Ah, que pena! Tenho braços e mãos
em vez de asas. Não voo.
Mas é sensata a natureza:
sabe que preciso ainda de dar umas bofetadas,
antes de atingir a santidade.
Ah, que pena! Tenho braços e mãos
em vez de asas. Não voo.
Mas é sensata a natureza:
sabe que preciso ainda de dar umas bofetadas,
antes de atingir a santidade.
Andava a chuva, chovendo
como é normal,
´té que o Sol em a vendo
cair no meu quintal,
lhe disse em tom reverendo
- Ó menina não faça tal,
tenho tudo à minha espera
e não posso andar correndo
que me cansa e me faz mal,
já chegou a primavera.
Era um gnomo,
um pingente,
da laranja um gomo,
dez réis de gente.
Fez-se senhor
de colarinho e anéis,
um ditador
dos mais cruéis.
Digamos que sim,
que é verdade pura
-ai de nós, ai de mim!
Vem aí ditadura.
Não foi ´era uma vez´
a fruta malsã
e às duas por três,
outra vez amanhã.
Dez réis de gente
que vai e que vem,
hoje pingente
amanhã ninguém.
Não sei que fazer aos beijos
que trago zelados no bolso:
alguns para dar em festejos
outros quero dá-los e não posso.
O beijo tem deve e haver;
ao dá-lo tem reciprocidade
e eu não os dou sem antes ver
o saldo na contabilidade.
De repente ficar sem beijos
dá-me aflição, nem pensar…
já não são beijos; são desejos
de querer e não ter para beijar.
Além, daquela velha árvore
vou trazer um bom chamiço
para assar um chouriço
e agora chama-lhe lá parvo.
Atiçado o lume e a candeia acesa,
não tarda, às duas por três,
por mor de aquecer os pés,
não tenho quem mos aqueça.
Assim, o corpo fica temperado,
com um ou dois copos de vinho,
que o chouriço não morre sozinho
nem eu fico desidratado…
Esta manhã tive um estranho encontro comigo,
como se não nos víssemos há anos.
Ou pior ainda, como se não nos conhecêssemos.
Era muito mais novo e tinha um sorriso tímido,
talvez duvidoso, a adivinhar o futuro.
Parti do princípio que a minha vantagem sobre ele
bastaria, excepto as pernas, que fraquejam agora,
mas isso não vinha a propósito.
Disse-lhe o que é costume nestes encontros:
Tens um aspecto magnífico, que fazes por aqui
e surpreendeu-me a sua resposta:
tenho estado onde me deixaste da última vez;
tens passado por mim ao longo dos anos
sem te aperceberes e agora, que as pálpebras
te vão pesando, queres abrir os olhos para mim
e demais memórias sem regresso nem remédio.
E a minha teimosia em viver vai caminhando
Inexoravelmente, até onde o Sol finge caminhar também
entre o céu raiado e o espelho do mar.
Restam-me pétalas, que tudo é graça,
e palavras nem uma só que valha a pena;
muitas delas caíram em desgraça
outras, pelo uso, estão de quarentena.
Não, não tenho mais palavras para dar;
tenho flores, que atiro das janelas,
com vantagem, para quem as apanhar:
não as leva o vento e podem ficar com elas.
O céu de incerto cinzento é o que me resta
das anosas videiras do quintal.
O outono levou-lhes as folhas e gavinhas mortas
e eu tenho saudades da verdade das uvas,
não desta alheia casta de refulgentes estrelas,
sempre prontas a azedar o vinho novo.
Uma nuvem veio hoje visitar-me.
De pequeno porte, tímida e já chovida.
Vinha por isso enxuta e acomodou-se a um canto
como um pedaço de algodão doce
perdido pela criançada.
Fugia das nuvens negras, da guerra,
com medo de ser confundida e trespassada
por uma qualquer bala assassina,
dessas que enchem o mundo de sangue
e de lágrimas e de valas comuns.
Estava claro que esta nuvem era uma refugiada
do céu, onde também se tornou perigoso viver.
Deixou cair uma lágrima, coisa sem importância,
e lamentou a sua condição de nuvem seca,
a quem o mundo extorquiu toda a água da sua vida.
Fardos, muitos sacos cheios
de nadas, valendo duas por uma,
não contando os sacos meios,
metades de coisa nenhuma.
Redimido, como sempre quis,
em dias de domingo e nas festas
doava gardénias à sua amada feliz,
na verdade, apenas estevas e giestas.
Quando havia mais carrego sonhava:
um dia compro-lhe gardénias de verdade,
pese o infortúnio – pois se a amava –
que as flores sejam a nossa liberdade.
O Sol e as nuvens brancas
choram, à vez, no rio da minha terra,
o anunciado inverno.
Eu soletro mágoa e digo lágrima;
soletro ave e digo pena…
Água de algum lugar chove em mim,
deixando-me sem palavras enxutas.
Com o tempo sucumbem os versos quebradiços,
mesmo os que antes giravam em carrossel,
são agora memórias, talvez reais, submissos,
e tresandam a tinta e a folhas de papel.
Mudam os tempos dos verbos para os passados,
que os há também actuais, sobreviventes
à custa do garimpo e da salvação dos mal-amados
versos que um dia foram chatos, impertinentes.
Não há meio de conseguir uma conciliação
e os versos, felizes com a escolha, é o que penso,
assomam às folhas perdidas, de aluvião,
cuidando confundir-me, quais carvões de incenso,
mais não podem que uma tremenda confusão,
há tanto tempo perdidos, nem eu a eles pertenço.
São elas, mais do que as nozes, as vozes:
a noz da guerra, não parte, rebenta, ai de nós.
A noz da fome, dura de roer a quem a come;
a quem a tome e não consome tem outro nome.
Sobra uma terceira noz, noz como nós, basta vê-la
e surge, de viva voz, o desejo. Apetece comê-la.
A um canto da revolta, o canto
e a lágrima em forma de coração,
seca. Um mar de desencanto.
A alma cheia e um pranto de razão.
E a razão é um pássaro altivo,
à afronta não cessa o voo nem cala,
antes morto que cativo
e a sua lágrima é em forma de bala.